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ENTRIB

Trata-se de um mesmo entremez publicado em quatro testemunhos espanhóis –Rasgos del ocio (1664), Floresta (1691), Manojito (1700) e Obras poéticas póstumas (1722) –atribuído a dois autores diferentes. Em Portugal, a Real Mesa Censória autorizará a tradução da peça, acrescida de sintoma de novidade, de que existem duas edições: Novo entremez de Dia de compadres (Lisboa, 1772, na oficina da Viúva de Ignácio Nogueira Xisto; Lisboa, 1804, na oficina de António Gomes), ambas sem autor, idênticas , à excepção de mínimas variantes tipográficas. O adjetivo “Novo” não era casual. Dada a relação entre o riso e o seu contexto e a presença de uma tipologia de personagens e situações burlescas típicas dos entremezes, era necessário adaptar caracteres, localizações e chistes para que o público português imergisse nos meandros do assunto e pudesse entender e desfrutar da sua comicidade – com a mesma intensidade da dos espectadores originais– ao reconhecer situações, burlas e protagonistas. Justificam-se, assim, as diferenças subtis que existem entre o entremez espanhol e a tradução portuguesa, uma vez que ambas as culturas partilhavam a tradição da “quinta-feira de compadres”.
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Entremez de Francisco Antonio de Monteser y Espinosa (Sevilla, c. 1616-Madrid,1668), autor que se dedicou em grande parte a este género de teatro. Chegaram até hoje numerosos testemunhos do texto, quer impressos quer manuscritos, o que atesta a popularidade da obra em Espanha ao longo dos séculos XVII e XVIII. Em Portugal, conhece-se apenas um testemunho, manuscrito.
A trama geral do entremez centra-se na tentativa de um velho em convencer o sobrinho plebeu endinheirado a casar-se com uma fidalga. Assim que o jovem aceita a proposta, logo surgem parentes falidos da futura esposa que lhe pedem dinheiro e bens, que o noivo recusa satisfazer. Despeitados, os fidalgos ameaçam cancelar o casamento, mas o tio consegue demovê-los. A chegada da noiva provoca, no entanto, reacções diferentes nos dois entremezes: na versão espanhola a incompatibilidade de caracteres é exacerbada num jogo de perguntas e respostas curtas e leva à separação dos noivos; na versão portuguesa, os noivos trocam breves palavras, chegando a acordo para celebrar o casamento, apesar de uma certa aversão mútua, terminando o entremez em baile em ambos os casos. A cena final, contudo, é de diferente dimensão nas duas versões. No Entremés de la Hidalguía são cantados apenas cinco versos (pelo noivo e pela noiva), no Entremez da Fidalguia a cena prolonga-se por algumas dezenas de versos, em que várias personagens (além do casal, os Fidalgos, Aias e Pajens) intervêm e cantam também.
À semelhança do que acontece com outros entremezes com versões bilingues, também neste caso a versão em português é mais ampla contando com um substancial aumento do número de versos, que advém, sobretudo da muito maior extensão do diálogo inicial entre tio e sobrinho, que desenvolve o tópico da associação do sangue ao capital pelos laços do matrimónio.
A acomodação instala a acção em Portugal (Lisboa é lugar da corte), sendo omitida a proveniência sul americana do chocolate, Guaxaca , mas não a iguaria.
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Sob o título Entremés de Escandarbey, inserido na colectânea de entremezes Rasgos del ocio (1664), surge um texto sensivelmente diferente atribuído, desta vez, a Francisco Bernardo de Quirós. A tradição espanhola tem preterido o texto de Melgarejo a favor do atribuído a Quirós, sem sequer problematizar a questão da autoria que a existência do impresso sevilhano suscita. Existe um outro texto, Los Holgones, atribuído a Juan Crisóstomo Vélez de Guevara, de que se conserva um manuscrito na Biblioteca Nacional de España (Ms. 15688) e uma edição em Rasgos del Ocio (1664).
A tradução portuguesa de El Escandarbey - A força de uma alegria - foi publicada pela primeira vez em 1780, na oficina de Crispim Sabino dos Santos, em Lisboa, com licença da Real Mesa Censória. Em 1791, sai da oficina de António Gomes um novo estado daquela edição, também com licença da Real Mesa Censória, com variantes mínimas relativamente à de 1780.
A análise comparativa de Escandarbey, de Melgarejo, e de A força de uma alegria vem também reforçar a ideia de uma maior propensão para a exploração da meta-teatralidade por parte dos tradutores portugueses, seja por via textual seja na montagem do espectáculo, de que as didascálias dão conta. Em A força de uma alegria pode também observar-se o grau de proficiência do tradutor e a sua habilidade estilística e linguística: por um lado, segue-se de perto o texto de partida, levando até à formação de rimas imperfeitas ou ao abandono da rima; por outro, o tradutor não se abstém de alterar recursos estilísticos presentes no entremez de Escandarbey, substituindo-os por formulações que parecem seguir uma poética própria.
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Sob o título Las Lenguas, conhecem-se dois entremeses distintos ainda que relacionados. As semelhanças na trama, figuras e até versos faz com que a autoria destas peças se veja atribuída, nos testemunhos como pela crítica, quer a Jerónimo de Cáncer quer a Pedro Calderón de la Barca. Catalina Buezo (La mojiganga dramática: de la fiesta al teatro. Vol II, Kassel, Reichenberger, 2005, pp. 170-173) argumenta que o entremez que aqui se edita é obra de Cáncer composta por volta de 1655. Esta peça terá tido ampla difusão, pois encontra-se editada em Floresta de Entremezes (1691), Manojito de Entremeses (1700) e Entremeses varios (s.a.), tendo circulado ainda num outro impresso solto sem indicações editoriais. As diferenças entre testemunhos são negligenciáveis, circunscritas a alguns poucos vocábulos e à já mencionada dupla atribuição (Floresta e Manojito dizem-na de Cáncer, os restantes dois de Calderón). A versão portuguesa surge num impresso datado de 1772 sob o título Entremez das Línguas ou Derrota de um Velho Louco, conhecendo-se-lhe o manuscrito enviado à Real Mesa Censória que o origina, com licença de 10 de Fevereiro desse mesmo ano de 1772. Nesta versão a autoria não aparece expressa. Não obstante seguir de perto o texto castelhano, a tradução produz algumas alterações significativas ao substituir, acrescentar e desenvolver alguns números. Mas talvez a diferença mais evidente seja a disposição em prosa do original versificado, mesmo quando o texto não não mostra qualquer mudança entre versões.
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O entremez de Rebelo caracteriza-se pela concentração e exuberância: em apenas 206 versos justapõe uma série de cenas de intensa comicidade, provocada pelo brilhantismo estilístico da paródia poética e a força dos motivos burlescos. Em contrapartida, os actores pedem ao público a suspensão da sua exigência de compreensão e coerência, ou que completem estes requisitos mediante as suas próprias conjeturas, suprindo assim os diálogos e motivos ambíguos ou elípticos. Por outro lado, o protagonismo da figura do sacristão insere o entremez num subgénero bem definido, destinado por norma a acompanhar o auto sacramental do Corpus Christi e amplamente representado na Musa entretenida. Por último, a intensidade do tom burlesco contrasta com uma coda que o desvia de maneira inesperada para o terreno satírico-moral: as pancadas que o sacristão adúltero recebe convertem-se de súbito num castigo exemplar dos seus pecados, às mãos de um marido que, logo investido de uma autoridade insuspeita, invoca explicitamente o respeito que se deve ao sacramento do matrimónio e à instituição eclesiástica. O novo espírito do entremez, na versão portuguesa, coincide com o conferido à figura que experimenta a transformação mais significativa: Clara. A mulher casada e cortejada converte-se na protagonista indiscutível da obra. Ela concebe e executa o ardil do cesto, e prolonga-o deitando água sobre o galã e atirando-o ao palco. Mas a sua atitude é clara no monólogo que a adaptação portuguesa lhe concede no final do primeiro quadro: nem tem intenção adúltera, nem intenção justiceira; o seu propósito consiste apenas em «ouvir o que canta» e «fazer zombaria» do «louco» de Crespim. Com toda a coerência, Clara entra em cena no momento final para evitar que o marido e o alcaide recorra à violência. No seu entender, «a peça que lhe eu fiz / em o ter dependurado / bem lhe basta por castigo» (vv. 347-349). Em consonância com esta personagem e o seu ponto de vista, o adaptador português harmoniza a estranha dissonância do modelo castelhano e unifica o tom e a orientação da farsa, convertida em puro passa-tempo, uma simples burla benigna e desenfadada, expurgada de extremos grotescos e sem pretensões moralizantes.

José Javier Rodríguez Rodríguez,Rebelo reescrito: de La burla más engrazada a A peça mais engraçada in Teatro de Autores Portugueses do Século XVII: Lugares (in)comuns de um teatro restaurado, José Camões e José Pedro Sousa (org.), Lisboa, Centro de Estudos de Teatro, 2016, pp. 147-151
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No Entremés del Poeta, de Francisco de Leiva, dois homens dirigem-se a casa da personagem principal, convidados a ouvir as suas mais recentes criações dramáticas. O poeta está em plena actividade criativa, procurando rimas e conceitos intrincados para explorar na sua obra. Ao aperceber-se da presença dos dois homens, o poeta propõe que oiçam a sua composição, uma comédia sobre o amor proibido e trágico de Píramo e Tisbe, conto da mitologia romana, difundido por Ovídio nas Metamorfoses. Brincando com a eloquente seriedade da peça do poeta, o entremez é uma sátira ao teatro da época, à linguagem e estética barrocas, bem como aos efeitos espectaculares proporcionados pela maquinaria cénica – prevê-se, por exemplo, Vénus a voar sobre o palco, e elementos cénicos a «desmaterializarem-se» em frente ao público. Enquanto o poeta lê a história aos dois convidados, aparece um oficial de justiça, que o acusa de fazer uma comédia sem ter a licença necessária para tal e, por isso, anuncia que o prenderá. Irritado, o poeta diz não reconhecer a autoridade do meirinho, porque, no seu entendimento superior, só o deus Apolo teria jurisdição sobre questões relativas à sua arte. A altercação é interrompida com a entrada em cena de um mediador, que afirma vir em nome de Apolo para defender o poeta e, assim, põe fim à disputa. A peça termina com um final feliz, numa cena cantada e dançada, típica deste género teatral.
O Entremez do Poeta Dom Tristão tem o mesmo argumento do entremez espanhol atribuído a Francisco de Leiva, embora o texto português não indique o nome do autor nem do tradutor. Existe apenas um testemunho português, inserido numa colecção manuscrita, de uma única mão, de entremezes que pertenceu a Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925), depositada na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (CF-D-6-22, ff. 77-80v).
Ao compararmos o texto português com qualquer um dos testemunhos espanhóis, podemos identificar três núcleos centrais em que as diferenças entre a tradição espanhola e o entremez português são particularmente evidentes: 1) mais didascálias e com maior detalhe; 2) tendência para expansão do texto na tradução, com ênfase na exploração do humor; 3) bilinguilismo - Dom Tristão está a escrever uma comédia, género que, segundo a estética barroca, era indissociável da língua – o espanhol – em que se escrevia por norma e em que deveria ser interpretada. Deste modo, quando Dom Tristão cita a obra que está a escrever, fá-lo em espanhol.
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O argumento central do Entremez do sapateiro surdo e do Entremez famoso del zapatero sordo é idêntico: o Sapateiro quer casar com Joana, sobrinha de Susana, mas o facto de ser surdo causa-lhe alguma preocupação. Susana informa-o que a sobrinha aceitou casar-se, no entanto, desconhece a sua surdez. No decorrer do dia, o Sapateiro recebe como clientes o Cura (no texto espanhol, o Sacristán) e um Velho. Nestas interacções ocorrem várias situações de mal-entendidos criadas pela surdez do Sapateiro. Quando o casal finalmente se conhece, ainda que inicialmente bem-impressionada pelo noivo, ao aperceber-se da sua surdez, Joana recusa prosseguir com o noivado. No entanto, o casamento acaba mesmo por acontecer e o entremez termina em baile.
Ainda que identifiquemos um número elevado de diferenças entre os dois textos, estas são principalmente linguísticas, não tendo um grande peso no desenvolvimento da história. No Entremez do Sapateiro podemos ler um longo parlamento em que o Sapateiro refere pormenorizadamente a sua ascendência como argumento para as suas qualidades. Este é um recurso cómico bastante comum e que podemos encontrar em vários outros textos portugueses. No entremez português existem ainda referentes geográficos (Espinho, Terreiro do Paço, Adro de S. Paulo) para os quais não encontramos correspondência no entremez espanhol.
Do entremez português conhecemos um testemunho no Arquivo Nacional Torre do Tombo, Manuscritos da Livraria, n.º 109, bem como outra versão no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória, cx. 289, n.º 1604 e que sabemos ter sido publicada em quatro ocasiões distintas entre 1770 e 1792. Da versão espanhola existem pelo menos três testemunhos impressos, encontrando-se um deles na Biblioteca Nacional de Portugal.
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