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ENTRIB

A força duma alegria

A força de uma alegria

Pessoas que compõem o entremez:
Onofre
Rodolfo
Cristerna
Ambrósio
Escandarbeis
Saem Onofre, vestido de luto, e Rodolfo.
RODOLFO
Amigo Onofre, vós sem alegria?
ONOFRE
Perdi todo o meu bem e companhia.
RODOLFO
Vós em esse traje! Que tem sido?
ONOFRE
A praça me tiraram de marido,
E vejo a de solteiro já passado.
RODOLFO
É o melhor ascenso de um criado.
E isso vos dá pena e aflição?
ONOFRE
Era mulher de enche-mão,
suposto era enfadosa,
nem tinha muito juízo, era entre feia e formosa.
RODOLFO
Que boas partes...
ONOFRE
                             E por isso é que eu choro.
RODOLFO
... ser feia e tola!
ONOFRE
                      Era bem como um ouro.
A condição mui terna parecia:
Ela não estava em casa todo o dia,
E ainda depois de andar em coiche
até às doze ou uma d’alta noite
E estivesse porfazer a cea,
não dava uma palavra, era mui boa.
RODOLFO
Que linda condição para queimada!
ONOFRE
Também era mulher aproveitada:
quando faltava dinheiro,
o que eu traziapara vaca e mais carneiro
por meu trabalho não sair debalde,
o gastava em solimão e alvaiade.
RODOLFO
Bem guisado o jantar e mais a cea
seria o daquele dia.
ONOFRE
                                               Era mui boa.
Sua virtude do mundo era louvada,
sempre ia a rezar.
RODOLFO
                                            Aonde?
ONOFRE
                                                                Ao Prado.
O que nela perdi não há quem o creia.
RODOLFO
Forte mulher.
ONOFRE
                                    Oh, se era.
Tanto me amou que houvera ela trocado
a sorte por haver-me a mim deixado.
RODOLFO
Esse pesar a vós vos enlouquece.
ONOFRE
Desejava enviuvar, era mui boa.
RODOLFO
Pois para que, como é justo,
tanto pesar se divirta,
uma notícia hei de dar-vos,
pois sei por cousa mui certa
que a Câmera vos fez alcaide.
Este amo a grão contento.

Vozes dentro que dizem «Viva Onofre, nosso alcaide», e sai Ambrósio com uma vara que dá a Onofre.

AMBRÓSIO
Está mais que gostoso o lugar todo
de vos ver feito alcaide.
ONOFRE
                                                           E eu contente
pois, quando aguacil fui em esta terra,
era de paz, e agora sou de guerra:
a ninguém prendia, executava,
e aguacil ad honorem me chamava,
pois que filho de vizinho e com amigos
não me rendia o ofício quatro figos.
AMBRÓSIO
Agora tudo irá bem, pois nada fareis debalde.
ONOFRE
Porque compra o pão e mais o vinho em esta terra o alcaide?
AMBRÓSIO
E o carneiro e vaca e toucinho.
ONOFRE
Isto justo parece, Ambrósio amigo.
E já que sou alcaide, neste dia
devo largar este luto de alegria.

Tira o fumo do chapéu.

RODOLFO
O povo um festim tem preparado.
AMBRÓSIO
Veremos que tal é o tal festejo.
ONOFRE
Que me faça, amigos, bom proveito.
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AMBRÓSIO
Uma loatem aparelhado
para aplaudir do Senado o bom destino.
ONOFRE
Serei, bem que interessado, agradecido.
E que título tem a tal farsada?
AMBRÓSIO
                                                                           É de grão fama.
ONOFRE
Como se nomea?
RODOLFO
                                          Escandarbeis se chama.
ONOFRE
Rodolfo.
RODOLFO
                       Senhor.
ONOFRE
                                            Vem-se de graça, sem bilhete,
às comédias que se fazem ao alcaide?
RODOLFO
Sim, senhor, e mandais em todas elas.
ONOFRE
Pergunto se se dá real por vê-las.
RODOLFO
Não, senhor, mas atenção
que a primeira figura vem saindo.

Sai Escandarbeis vestido de mouro, ridículo, ao som de caixas.

ESCANDARBEIS
Eu sou Escandarbeis, esse famoso
e nomeado.
ONOFRE
                              Nada tem de vergonhoso.
RODOLFO
Aqui não se há de falar.
ONOFRE
                                                         Que lindos modos!
Pode ter a comédia se não falam todos?!
Mal sabeis de auditório, camarada,
pois até as mulheres dão sua falada.
ESCANDARBEIS
Moiro sou de nação, estai atentos,
que tudo o que fizer serão portentos.
ONOFRE
Bravo, bravo, oh que espaventos!


AMBRÓSIO
Não estará calado por um pouco?
RODOLFO
Deixe, senhor alcaide, que ouçamos.
ONOFRE
Calem-se, que não sabem o que dizem.
Só pode isto ser bom se murmuramos.
Rebento por falar.
RODOLFO
                                     Porquê?
ONOFRE
                                                 Me enfada
que não sendo meu celebrem nada.
ESCANDARBEIS
Esta praça que está dentro de Hungria
a conquistar venho porque não é minha,
e julgo nela entrar e pôr-lhe o freio,
pois que sempre fui amigo do alheio.
ONOFRE
A cara bem o mostra, e sacudido
Era bem que fosse e derreado,
E já que mostra ser tão atrevido,
se vem por lã, se volte tosquiado.
ESCANDARBEIS
Toquem a investir.
ONOFRE
                                               Isto não pode sofrer-se.
AMBRÓSIO
Não estareis calado, impertinente?
RODOLFO
Tudo isto é ficção e aparente.

Tocam as caixas e sai Cristerna de moira graciosa.

CRISTERNA
Que pertendes, mourinho, vil bastardo?
Não sabes que este lugar defendo e guardo,
e sou, para quebrar tuas aljavas,
uma sublime, valerosa Palas?
ONOFRE
Oh, que lindo tem sido este soneto!
RODOLFO
Calai e atendei este conceito.
CRISTERNA
Não hei de ouvir-te, que sou mulher valente
e a que escuta de heroína se desmente.

Vai-se.

ESCANDARBEIS
Detém-te, fugitiva,
volta, rosa com pés e neve viva;
não fujas tão ligeira
que te dou de dinheiro uma algibeira;
Em bruto te resolves,
pois vendo um homem que te dá, não voltas.
Olha que sou gentil e tenho coiche.
ONOFRE
Coiche, disse?
AMBRÓSIO
                                  Sim, Onofre.
ONOFRE
Que me melem
se ao estrondo do coiche não vier.

Sai Cristerna.

CRISTERNA
Que me queres, mourinho? Já me aplaco.
ESCANDARBEIS
Descansa e toma um pouco de tabaco.
ONOFRE
Este moiro a mim me conquistara
se com coiche e tabaco me brindara.
CRISTERNA
Viste um homem sem traça e sem modo
do Antártico passar-se ao outro pólo?
Viste presumir de sábio sendo tolo,
e de todos geralmente ser malquisto?
ESCANDARBEIS
Já o tenho visto todo.
CRISTERNA
Pois que se me dá que o tenha visto?

Vai-se.

ESCANDARBEIS
Não te ausentes, escuta-me, matrona,
mulher valente, singular Belona.

Vai-se.

ONOFRE
Meloa a chamou?
RODOLFO
                              Sim, que é história.
AMBRÓSIO
De que chorais?
ONOFRE
                           Ocorre-me à memória
de ver que um homem todo arrebatado
todo o sentido e cabedal emprega,
e, pensando o que não é, fica logrado.

Saem Escandarbeis e Cristerna.

CRISTERNA
Não me persigas mais, tenho entendido
teu intento qual seja, eu não duvido.
ESCANDARBEIS
Afirmo que sou teu.
CRISTERNA
                                    E eu sou tua.

Dão-se as mãos.

ONOFRE
É galante a farsa e decantada.
RODOLFO
Mas do enredo não entendi nada.
AMBRÓSIO
Vencido volta, pois está casado.
ONOFRE
Veio por lã e volta tosquiado.


ESCANDARBEIS
Donde eu puser os pés poreis as bocas.
ONOFRE
Ouvis, amigo? Dessas graças, poucas,
porque isto é grande grossaria.
Aqui não há de mandar, mande em Turquia.
CRISTERNA
Acabe isto com folgança
em louvor do novo alcaide
a quem servir, regalar,
quer o povo do lugar.


Cantando e bailando com Escandarbeis:

Oh que bem que baila a moira
ao som da sua moresca.


ONOFRE
Deos me tenha da sua mão
poisminha hora chegou já.

Atira com a vara e baila com os dous.

RODOLFO
Que fazeis, Onofre?
ONOFRE
Arrimar a gravidade
que não serei o primeiro
a quem no nosso lugar
se diga que o tem feito
uma mulher transmutar.

Cantam todos e bailam.

Oh, que bem que baila o alcaide
ao som da sua moresca!

Fim.