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ENTRIB

Entremez da Fidalguia

Entremez da fidalguia.

Figuras:

Um velho
D. Zurrapa
Lourenço
Dous fidalgos
Um criado
Aias e Pagens
Sai Velho e Lourenço, vestidos de vilões.
Lourenço
Já lhe disse, tio velho,
que inda não estou casadouro.
Velho
Hei de te relar o couro
se não tomas meu conselho.
Lourenço
Fugirei como um galgo
desse enfadonho, tio,
pois de falar desconfio
em casamento fidalgo.
Velho
Todo homem que muito tem,
ainda que seja vilão,
por crecer sua geração
busca mulher mui de bem.
Lourenço
Tenha mão, meu velho amigo,
eu lhe obedeço agora.
Que tal é essa senhora
que se quer casar comigo?
Que eu lhe juro em conciência
que mulher fidalga e nobre
que me busca, é só por pobre
e por sua conveniência.
Velho
Ela é guapa no parecer
e muito alta na qualidade.
Lourenço
Pois se hei dizer verdade,
não me serve essa mulher.
Velho
Por que não?
Lourenço
Não há que cansar.
Velho
Por que não, me hás de dizer.
Lourenço
Porque se é alta a mulher,
eu não lhe posso chegar.
Velho
Olha que é de Lisboa,
fidalga, e de tal primor
que foi já dama de honor,
e, se a ocasião é boa,
aceita-a despida e nua.
Lourenço
Tate, tate, tenha mão,
que se está de ocasião
deixemos passar a lua.
Velho
Não ouvi o teu espanto,
torna a dizer outra vez.
Lourenço
Isso são contos de um mês
e eu não posso falar tanto.
Velho
Ora ouve-me, sequer.
Deixou teu pai, está-me atento,
disposto em seu testamento,
que casasses com mulher
que te soubesse alimpar.
Lourenço
Pois pergunto, tio meu,
eu por ventura sou sujo?
Diga a meu pai caramujo
se casa ele, ou caso eu?
Velho
Sim, mas tu podes casar,
com as fazendas que ficas,
sendo tantas e tão ticas,
com ũa fidalga de solar.
Lourenço
Deixe-se desse conselho,
que não a quero receber,
pois se solada há-de ser,
vem já no calçado velho.
Velho
Bem sabes que és vilão,
e só D. Zurrapa Andar
te pode a ti ilustrar,
bem que tenhas muito pão,
pois sabes que é verdade
que tem por maior grandeza
parentes que são limpeza
de toda casta e calidade.
Lourenço
Pois não é mais acertado
que, se tanta riqueza herdamos,
que fartos e ricos vivamos,
do que pobre enfidalgado?
Pois é certo que essas preas
são como os piolhos moços,
que por ser parentes nossos
nos tiram o sangue das veas.
E só por esta rezão,
e não andar acocado,
desde aqui o ser casado
vos renuncio.
Velho
Elas são
rezões já impertinentes.
Lourenço
Não, não são, que, arrependido,
me tirareis do sentido
se me vir entre parentes.
Velho
Ouve-me ũa verdade
que poderá ser te reporte.
Se é moda casar na corte,
faze de teu pai a vontade,
porque vês que neste mundo
em que erre a gente toda
se há de casar à moda.
Lourenço
E se eu vejo que me fundo
em seguir a gente tola
e de meu pai o testamento,
pois este ilustre casamento
me deixa a pedir esmola.
Velho
Faze que a tua riqueza
de todos seja estimada,
que mulher afidalgada
é dos filhos a nobreza.
Lourenço
Não quero essa estimação,
já eu a aturara a ela,
mas à sua parentela
isso é ũa perdição.
Velho
Sobrinho, isso não importa,
que todos os que assim casaram
por essa miséria passaram,
abrindo a todos a porta.
Lourenço
Pois se nisso se não repara,
quero honrar estas barbas,
e serei como as caiadas,
que lhe custam os olhos da cara
as unturas do seu rosto.
Velho
Essa eleição é acertada,
que atura a bursigiada
aquele que quer ser formoso,
e nem a ti nem a mim
estava já bem o faltar,
pois eu lhe cheguei a dar
a tão grã senhora o sim.
Dentro, o 1.º Fidalgo, batendo, diz:
1.º Fidalgo
Meu primo Dom Lourenço está em casa?
Velho
Sim, senhor, em casa está,
a receber honras tantas
Sai o 1.º Fidalgo, muito redículo.
1.º Fidalgo
Meu primo da minha vida,
primo amigo da minh’alma,
dou-vos licença, abraçai-me,
que o parentesco me alhana.
Lourenço
Por que parte somos primos?
1.º Fidalgo
Pela de D. Zurrapa,
a que há de ser vossa esposa.
Lourenço (abraça-o)
Pois se é Zurrapista, vaia.
1.º Fidalgo (passea)
Ea, passeai comigo,
falemos em cousas várias.
Lourenço (passea)
Passeemos, muito embora,
já que meu primo assi o manda.
(à parte)
Destes primos os primores
me dão grão susto na bolsa.
1.º Fidalgo
Assim ireis desemburrando,
tratando gente fidalga.
Lourenço (à parte)
Será ele desembolsando
com que matares a galga.
Almoçaste já, meu primo?
(à parte)
Por ver se assim se acomoda.
1.º Fidalgo
Si, si,esta madrugada
bebi mui bom chicolate
antes de sair de casa.
Consentis vós que vos mande
um par de dúzias de caixas?
Se quereis, sem cumprimento,
mandarei que logo as tragam.
Lourenço (à parte)
Jesus, que fera nagacia.
Pois tende-lo em casa vós?
1.º Fidalgo
Em casa, nem ũa migalha;
porém, meu irmão mais novo,
que é mancebo de esperanças,
há de embarcar-se a Guiné,
e em passando, cousa é clara
que há de casar ricamente,
por ser de gente tão alta,
e logo nessa frota manda
mil parches de tacamaca
e antão vos mandarei
chocolate de importância.
Lourenço
Pois se nesse estado está,
eu já mando aquentar água
pois já tenho encomendado
a bom mestre, que me faça
um rapaz de habilidade
que possa passar à Índia
a aprender a oleira
de obra de porçolana
para que dous navios logo
mande de xícaras e chávana.
1.º Fidalgo
E para que é tal quantidade?
Lourenço
Para o chicolate em que fala.
1.º Fidalgo
Sois honrado, porém, basta.
Que quereis consertar as casas?
Lourenço
Si, senhor, que com tal gente
se esborralharam as taipas.
1.º Fidalgo
Homem sois de pensamentos.
Lourenço
E vós, homem de palavras.
1.º Fidalgo
Primo do meu coração,
olhai cá, vós bem sabeis
que entre parentes se gastam
muito poucas ceremónias,
porque chãmente se tratam,
e não andara eu acertado
se convosco as usara.
Eu hei mister logo, logo,
cem alqueires de cevada.
Que me dizeis?
Lourenço
Que logo, logo...
1.º Fidalgo
Sim, primo e parente honrado.
Lourenço
Pois digo, primo, que logo, logo,
logo, logo, não quero dá-la.
1.º Fidalgo
Como não, basbaqueirão!?
Pois hoje a boda se acaba,
bem se vê que sois vilão.
Lourenço
Mas que se acabe hoje a boda.
1º fidalgo (trombudo)
Vai-te, que és de gente baixa.
(bufa)
Patifinho e vil canalha.
Velho
Sobrinho, tu não tens rezão.
O que vossa senhoria diz, se faça.
Mando que logo, logo, se midam.
1.º Fidalgo
Certo que agastado estava,
mas a cevada abrandou-me.
Lourenço
Sim, que emoliece a cevada.
1.º Fidalgo
Vou medi-la, Deos vos guarde;
e outra vez não negueis nada
a quem vos honra.
Vai-se.
Lourenço
Não, não, por certo,
que fica muito limpa a casa.
Não vo-lo disse eu, tutor?
Este levou a cevada,
outro virá pela palha.
Velho
Por mais está o penhor
se não for cousa que mais valha.
Dentro, o 2.º Fidalgo, redículo.
2.º Fidalgo
Olá, não há quem me responda?
Está meu sobrinho em casa?
Lourenço
Agora me convém estar,
porque se é tio quem dá,
se este me chama sobrinho,
algũa cousa me trará.
Mas o contrário suspeito,
porque os tios nũa casa
são peores que enteados.
Este acaba de alimpar-me.
Sai.
2.º Fidalgo
Lourencinho, abraça, abraça.
Lourenço
Não posso abraçá-lo agora,
que já tenho as mãos atadas.
2.º Fidalgo
Não repares, meu sobrinho,
(abraçam-se)
abre essas mãos e abraça-me.
Lourenço
Ea, vamos ao negócio.
Sois tio de D. Zurrapa?
2.º Fidalgo
Inda que apartado, sou
do tronco da sua casa.
Lourenço
Pois, olhai, se sois do tronco,
não andeis cá pela rama.
2.º Fidalgo
Dizeis bem, meu sobrinho,
eu hei mister, logo, logo,
de azeite seiscentas canadas.
Lourenço
Este deve ser D. Quixote
e aqui procura a Mancha.
2.º Fidalgo
Pois, sobrinho, que dizeis?
Lourenço
Pois, meu tio, logo, logo?
2.º Fidalgo
Sim, sobrinho honrado.
Lourenço
Digo que logo, logo, se tal der
me afoguem raios de trampa.
2.º Fidalgo
Não só sois vilão ruim,
mas carreiro quando nada.
Que é não dar? Vilão, pedinte,
homem de baixa prosápia!
Não basta que eu consinta,
sendo de gente tão alta,
que com Zurrapa caseis?
Pois se nisto se repara,
é sujar o meu solar.
Lourenço
Ela alimpar-me-á a mim,
mas vós alimpais-me a casa.
2.º Fidalgo
Se o não dás, hei de levar
tudo quanto houver em casa.
Lourenço
Levar-me-eis a mim primeiro,
que sou dela a melhor peça.
Velho
Sobrinho, tu não tens rezão.
O que vossa senhoria diz, se faça,
porque é muito bem feito.
Lourenço
Se é bem feito,
leve tudo o que há em casa.
2.º Fidalgo
Sois honrado, esse primor
toda a cólera me abranda.
Lourenço
Sim, que o azeite é madurativo.
2.º Fidalgo
A Deos, a Deos, Lourencinho,
(abraça-o)
que sois homem estremado.
Vai-se.
Lourenço
Vem o que é gente fidalga?
em lhe dando quanto pedem
logo mui brandos se amansam,
mui afáveis, mui corteses,
mas ũa mera piranga.
Velho
Sim, porém eles vem honrar
a toda a tua prosápia.
Lourenço
Antes creo vem chuchar
toda a minha fazenda,
e que haja inda quem se case
com mulher que é fidalga.
Velho
Pois sim, que se tolos não houvera,
que havia de ser delas?
Lourenço
Que vão coser e fiar
e não tudo romarias,
festas, galhofas e danças,
e os maridos paguem as favas.
E que seja eu também patau?
Oh, leve-as Barrabás.
Sai o Criado com um escrito, fazendo muitas cortesias.
Criado
Este papel remete a vossa senhoria...
Lourenço
É outro primo, sem falta.
Criado
D. Golondrón, meu senhor,
que por não sair de casa,
não vem assestir às bodas.
Lourenço
Os fidalgos são comos os negros,
tudo são parentes às duas palhetadas.
Mau, este pede por carta
e eu não sei ler.
Lede-a vós, que eu arreceio.
Criado
Farei com mui linda graça,
pois manda vossa senhoria.
Abre a carta com muitas cortesias, e lê-a.
Criado (lê)
Meu primo do meu coração, como sou homem tão fidalgo, vivo sujeito a grandes necessidades, mas como sou tão interessado neste nosso novo parentesco me obriga ũa precisa e muito urgente ocasião a pedir-vos, primo, dous mil cruzados sobre essas esporas e esse fecho de martinenes que remeto, e crede-me que são quantos trastes há nessa casa, mas se achares que é pouca prenda, vos mandarei um morrião com sua liga e tudo o mais, pois bem sabeis quanto vos estimo. Deos vos guarde. Vosso primo, D. Golondrón.
Lourenço
Muito discreto é este meu primo,
pois pede muito em muito poucas palavras.
Criado
É lacónico.
Lourenço
E pedinte.
Ah, senhor, se o gavião
tem barriga, já me agrada.
As esporas e martintinenes
não me servem para nada,
que como não sou caveleiro,
se monto, é só de albarda.
Criado
Pois que é o que responde vossa senhoria?
Lourenço
Dizei-lhe..., porém a boda
de minha esposa, D. Zurrapa,
parece que sai já,
e como vem enzurrapada.
Velho
Pois põe-te recto,
por não murmurar-te a gala.
Passea Lourenço soberbo, e sai a noiva, muito redícula, com Aias e Pajes, e os dous Fidalgos com cortesias.
1.º Fidalgo
Aqui está D. Zurrapa, amigo.
2.º Fidalgo
Amigo, aqui está D. Zurrapa.
Todos
Deos guarde a vossa senhoria.
Lourenço
É comigo?
Todos
Sim, senhoria.
Lourenço
Coitado de mim, metido
em tão grande trapalhada.
1.º Fidalgo
Sois guapo, que dais cevada.
Lourenço
Antes que chegue à estalage.
2.º Fidalgo
Guapo sois, que dais azeite.
Lourenço
Antes que venha o peixe.
Zurrapa
Ouve, que não merecias
ũa mulher tão fidalga.
Os dois Fidalgos
Ele não, o seu dinheiro
merece essa mão de prata.
Lourenço
Oulá, sou homem mui limpo,
porque esses teus camaradas
tem tomado por impresa
alimpar-me bem a casa.
Zurrapa
Pois se és um limpo escudeiro,
não te tenta ũa fidalga?
Lourenço
Ora já digo que sim,
por seres moça rasgada.
Zurrapa
Ora toma essa mãozinha.
1.º Fidalgo
Ah, mal lograda fidalga,
pobre de ti com um vilão.
Dão-se as mãos, todos cortesias.
Lourenço
Ai, fazenda da minha alma,
pobre de ti com fidalgos.
Zurrapa
Já que agora estou casada,
para celebrar-me as bodas
venha logo ũa guitarra,
pois eu também cantarei
e dançarão minhas aias.
Aias (cortesias)
O que vossa senhoria mandar.
Todos
Venha logo a guitarra.
Lourenço
Venha embora e seja logo,
pois, só de ouvir temperá-la,
estou já bailando por mim.
Tocam e põem-se em tom de dança. Cantando.
Zurrapa
Inda que hoje me abatam
vossos bigodes,
não sereis vós, marido,
quem me desonre.
Todos
Parabém seja a vossas senhorias, vitor, vitor.
Lourenço
Para ter mão no jogo
do casamento
eu, se vós sois fidalga,
serei marelo.
Todos
Parabém seja a vossas senhorias, vitor, vitor.
Repetem as mesmas cantigas todos que canta cada um só com voltas, e no fim de cada ũa o parabém, etc.
1.º Fidalgo (canta)
Hoje, amigo, corremos
sorte diversa,
pois casando-vos vós,
nós recebemos.
Todos
Parabém, etc.
E repetem dançando.
Lourenço (canta)
Tudo, amigos, é dar,
ou bem, ou mal,
mas eu dou-vos de comer,
e vós quem coma.
Todos
Parabém, etc (e repetem)
2.º Fidalgo (canta)
............................
............................
............................
Todos
Parabém, etc (e repetem)
Lourenço (canta)
............................
............................
............................
Todos
Parabém, etc (e repetem)
Aias e Pajens (cantam)
............................
............................
............................
Todos
Parabém, etc (e repetem)
Lourenço (canta)
............................
............................
............................
Todos
Parabém, etc (e repetem)
Zurrapa (canta)
............................
............................
............................
Todos
Parabém, etc (e repetem)
Lourenço (canta)
............................
............................
............................
Todos
Parabém, etc  (e repetem)