Entremez das Línguas ou Derrota de um Velho Louco
Pessoas que falam nele:
Um Velho
Um Homem
Um Italiano
Um Estudante
Uma Cigana
Um Valenciano
Um Negro
Uma Irlandesa
Um Moiro
e Um Francês
Pode-se representar com 4 ou 5 pessoas.
Sai o velho .
VELHO
Ditoso é o que caminha, se em chegando à pousada acha a mesa posta e preparada a cama. Muito alegre cantando venho buscando uma dança, porém creio que ela que corre porque não posso alcançá-la. Mas veremos se aqui nesta cidade, que não sei como se chama, posso achá-la ainda que me custe mui cara.
Sai o homem com uma carta.
HOMEM
Louvado seja Deus.
VELHO
Amén.
HOMEM
Qu’é isto, velho honrado, onde ides por aqui encaminhado?
VELHO
A Lisboa.
HOMEM
E, dizei-me, que vos traz aqui?
VELHO
A ver se acho uma dança nova para uma festa que no meu lugar se faz, de que estou feito juiz. Dizei-me, sabeis de alguma?
HOMEM(à parte)
Forte loucura!
VELHO
Eu pagá-la pertendo.
HOMEM
Jesus! Lástima tenho de vós!
VELHO
E eu também por vida minha, porque assaz venho cansado.
HOMEM
De que perdestes o juízo não há dúvida, ou vindes enfermo de Bolónia porque esta não é Lisboa, é Babilónia!
VELHO
Segundo me corre a fortuna, não duvido que em Babilónia se haja transformado… Triste de mim que farei, que tenha eu errado o caminho? Pois a Lisboa vinha, e me acho dentro de Babilónia, onde a variedade de línguas me fará louco!
HOMEM
Ora não façais extremos que eu vos darei remédio oportuno ao vosso intento.
VELHO
E é o remédio deitar-me alguma ajuda?
HOMEM
Não. Mas sim esta carta que vos entrego.
Dá-lhe uma carta.
VELHO
E com isto alcançarei a dança logo?
HOMEM
Nela está seguro o desempenho, contanto que busqueis o dono dela, fazendo ler a quem encontrares seu sobrescrito. (À parte) Forte ópio.
VELHO
Ora, senhor, muito obrigado. Se algum dia passar pela minha aldea desejarei de o saber, para lhe agradecer tanto favor!
HOMEM
Agradeço-vos a boa vontade. Fazei a vossa deligência, que a dança está segura. (À parte) Coitadinho…
Vai-se.
VELHO
Graças a Deos que discansarei de tão custosa fadiga. Ora aqui vem um… preguntar-lhe quero.
Sai o Italiano.
ITALIANO
Qui vá a trobar dináro, ante todo giorno ha de tagiar lo leto, qui el poltrono may fache bon efeto.
VELHO
Eu vou.
ITALIANO
Chento per chento moderata gananchia.
VELHO
Linda voz. Sabe vossa mercê a quem busco?
ITALIANO
Ó bene mio caro.
VELHO
Eu não busco vinho caro, busco uma dança nova.
ITALIANO
Yo vo la mostraró de bona gana, tirate questa estrata neta trobaró a questa mano la escaleta.
VELHO
Que neta, nem que troba nem que teta, parece-me isto matraca. Sabe vossa mercê quem é o dono deste sobrescrito?
Mostra-lho
ITALIANO
Ó Dio benedito poi far fanton folon, que cousa é questa? Bedere io la festa. D. Fulana de tale vagatola! Bruta parola; a mi com cantinela? Abançay, abançay lo mio fratelo, qui a lo manco bos porte in Orbitrelo.
Vai-se.
VELHO
Não lhe entendi palavra, mas adiante passemos que este estaria borracho.
Sai um estudante pobre.
ESTUDANTE
Dominus Tecum.
VELHO
Quem é que espirrou aqui?
ESTUDANTE
Quid dicus, amico meo?
VELHO
Eu não sou meco, nem mico.
ESTUDANTE
Escholasticus sum ego, pauper de solemnitate qui a te limosnam peto.
VELHO
Nem de espeto nem de pistolas jamais entendi.
ESTUDANTE
Audi precor.
VELHO
Vende pregos? (À parte) Isto será estudante ou ferro-velho?
ESTUDANTE
Mortuus sum paulo minus.
VELHO
Bem, trazeis pombinhos mortos? Então vamos a comê-los.
ESTUDANTE
Comisa me pabe feo.
VELHO
Tem palhas na camisa? Pois veja lá onde dormiu… conhece vossa mercê o nome deste sobescrito?
ESTUDANTE
Tace tace.
VELHO
Qué-lo em taça? Pois cá nem em borracha.
ESTUDANTE
Ambula statim amice.
Vai-se.
VELHO
Que missa, nem que estátua, com estas cousas certamente perderei o intendimento! Porém uma mulher ali vem, a ela quero perguntar-lho.
Sai uma cigana.
CIGANA
Guarde Dios a usted sanhor, como usted es bizarro e gentil. (À parte) Ay, portugueses galantes! Quiere usted que le lea la buena dicha?
VELHO
(à parte) Ora graças a Deos, esta alguma cousa lhe entendo. Se me não engano é cigana, pois me fala em buena dicha. Veremos se tenho dança, porque esta qualidade de gente corre todo o mundo em roda. (Para a Cigana) Diga-me usted, senhora, conhece o dono deste sobrescrito?
CIGANA
Non conosco, porque aquí soy estrangeira, pero diga usted lo que pertiende que io veré se servirlo puedo.
VELHO
Minha flor, eu procurava uma dança nova para uma festa que no meu lugar se faz. Não me é possível achá-la, nem o dono desta carta de quem a esperava ter…
CIGANA
Por esso discanse usted que algunas danças sé de que usted gustará. Ahora veja usted esta com una bella letrilha, e no cazo que no sirva iré luego por más.
(canta e dança)
Ay, pobre de te, viego,
que moído e fatigado
andas, em loucura ciego,
una tolice buscanco.
Vaite, vaite, pobre viego,
no quieras vivir aflito,
diziste de tu intiento,
vai buscar tu lagarcito.
Vai-se.
VELHO
Não seria muito ruim uma dança de ciganas, se todos fossem como esta que dançassem e dissessem:
(canta)
Se a dança chega a alcançar
venturoso me contemplo
nem tenho mais que pertender
nada mais quero esperar.
Sai um Valenciano.
VALENCIANO
Mol bon dia os done Deu.
VELHO
Outro tanto, meu senhor. Sabe vossa mercê para que é esta carta?
VALENCIANO
Por la creu Coberta de Rumarti, que se tire el mio macheto de chelva os donará um bom giro por lo chesto per belitre e brur! Anau al Diabli bochi xarizo.
VELHO
Quer chouriço? Nas tripeiras! (À parte) E para isto vejam o que palrou… (para o Valenciano) Sabe vossa mercê de alguma dança nova?
VALENCIANO
Bruto hermano...
VELHO
Bruto hermano, arre! Isso agora entendo eu! Cortesia, cortesia, que sou mais velho que ele!
VALENCIANO
A Deu, a Deu.
Vai-se.
VELHO
O cão é valenciano, e fala como Negro.
Sai um Negro correndo.
NEGRO
Neglo dizo bozanzé? Si viene buscando Neglo, que molamo chocolate, aqui za turo aderezo: harina de maís, bilota, almendrá, almilon tenemo. E para que haga glaza, le echamo terra de muelto. Espelate, que io veno.
Vai-se.
VELHO
A Irlanda fora primeiro que esperar por ti, cachorro!
Sai uma Irlandesa com um menino pela mão.
IRLANDESA
A Irlanda? Estimar saber-lo, em Irlanda morir mi marito. Querer dar volta el Patrio, no achar companha… Si vos ir, em vos serviendo voi por mis siete filholos. No sentir faltar dinero, que pedir por el camino. Si quereis aprendei dizendo:
(canta)
Si io me voy a Irlanda
em companha de tu,
nos dará su gracia
la sopa de Jezú.
Lanturulú, lanturulú,
lanturulú, lantantantú.
VELHO (canta)
Para buscar a dança
me fora eu a Corfú,
que lá não me faltara
a sopa de Jezú.
ELE e ELA
Laturulú, lanturulú,
lanturulú, lantantantú.
Vai-se.
VELHO
A ti e a teus sete filhos leve antes Barrabás, do que eu contigo fora a Irlanda desterrado. O demónio me enganou! Porém já agora não me vou sem procurar a dança, ainda que a vá buscar a Argel!
Sai um Mouro.
MOURO
Argel pues lievar el pliego a Mitilio del rescate per que ja tener promptes os captives para venir.
VELHO
Qu’é isto? (à parte) Pobre de mim que até Argel tenho chegado e achar a dança não posso. (para o Mouro) Conhece vossa mercê o dono deste sobrescrito?
MOURO
Zalam mequis tuquis, cristiani bazar turba gara maquei Alá maluqui, tecsi teziqui Caturri.
VELHO
(à parte) Parece-me que me chamou caturra. Não há cousa que mais me custe que não entender o que se me diz! Veremos se fala mais claro… (para o Mouro) Vossa mercê non falar Português?
MOURO
Saliquis, niquis beliquis, marmelis triquis traques Alá.
VELHO
Para lá, digo eu, sô cachorrão! (À parte) Nunca deixando impulhar, que esta canalha é vil!
MOURO
Seringuis Alá Alá.
Vai-se.
VELHO
Para lá, para lá. Seringa sê-lo há ele, moiro perro! Ora não está má a dança, se isto vai neste andar, correrei o mundo todo sem nunca a poder achar.
Sai o Homem.
HOMEM
Ora a Deus. Amigo velho, então que me dais de novo? Achaste já a vossa dança?
VELHO
Meu senhor, estou-lhe muito obrigado pela tal carta que me deu. Parece-me que pode guardá-la, porque cada vez estou pior, porque nem acho o dono dela, nem pessoa que mo diga. Nem ainda com quem me entenda, pois tudo são estrangeiros, canalha que nunca tratei.
HOMEM
Disso não sou eu culpado, porque em fim fiz o que pude… e o seres mal sucedido é causa a vossa fortuna. Porém, agora a tereis fazendo o que vos disser.
VELHO
Temos outra cartinha?
HOMEM
Não, mas no fim desta rua mora um francês chamado Monsiú Arnol, o qual faz um grande negócio em danças novas de toda a qualidade. Falai-lhe que vos dará a escolher a que melhor vos parecer, e por muito cómodo preço. (À parte) Segundo logro.
VELHO
No fim desta rua, diz vossa mercê?
HOMEM
Sim, naquelas casas grandes à parte esquerda que tem as janelas para a rua. (Aponta)
VELHO
Ora, perdoe-me, ensine-me daqui para me livrar de perguntas de que estou já aborrecido.
HOMEM
Pois está bem, eu vos ensino sem embargo de estar com pressa. (à parte) Aqui o faço enlouquecer. (Para o Velho) Vedes, no meio desta rua, uma igreja com um zimbório muito grande e três sinos em frente e uma porta muito larga com um pórtico mui alto?
VELHO
Vejo.
HOMEM
Pois ali é a freguesia.
VELHO
Está bom. Vamos ao que importa, e deixemos lá o nome das igrejas.
HOMEM
Isto é para vos guiares com mais certeza, porém passemos adiante. Vedes mais adiante um banco de ferrador e umas casas grandes à ilharga, com uma porta larga de cocheira?
VELHO
Vejo.
HOMEM
Pois não é ali. Vedes logo mais abaixo um oratório grande por cima de um borracheiro ao pé de uma botica, que defronte está um homem tirando dentes a cavalo?
VELHO
Vejo, mas admiro-me que aos cavalos também se tirem dentes.
HOMEM
Ele não os tira ao cavalo, tira-os à gente, porém montado a cavalo.
VELHO
Então para que é essa cerimónia?
HOMEM
Não é cerimónia, mas sim precisão, porque como ele guarda os dentes que tira, vindo a pé andaria mais carregado.
VELHO
É bom tirar de dentes, o que se vê por terras estranhas! Enfim, dizei-me onde são as casas, que isto é quasi meio-dia. Será hora de o achar em casa.
HOMEM
Pois sim. Vedes logo para a parte esquerda umas casas caídas e logo junto a elas umas casas novas com os telhados de estopa?
VELHO
Bem vejo, mas telhados de estopa ignoro que se façam.
HOMEM
Não vos admireis disso porque nestes países são mais frequentes os raios, e então estes ignorantes tem-se-lhe metido na cabeça que eles não caem sobre cousa mole, de forma que tem havido alguns que para ostentarem de opulentos tem coberto os telhados de pão de ló. (à parte) Come o ópio.
VELHO
Para um desses telhados tivera eu uma trapeira, mas, enfim, saibamos, é ali que mora o tal monsiú das danças?
HOMEM
Sim, ali mora. Ide. Procurai pelo seu nome e dizei-lhe o que quereis, que eu vos seguro o desempenho.
VELHO
Deos lhe pague esse bom modo e premita tenha fim esta fadiga. A Deos, meu senhor.
Vai bater em um dos bastidores.
HOMEM
(à parte) Coitadinho! Vai dar com um borrachão francês que de contínuo está cheio, porém o pior é dar-lhe o vinho sempre em brigar com destemperos notáveis. Vou-me antes que ele venha dar-me os agradecimentos.
Vai-se. Torna a bater o Velho e diz.
VELHO
O senhor Monsiú Anzol!
Sai um Francês comum bastão na mão.
FRANCÊS (enfadado)
Que querer, senhorr?
VELHO
Vossa mercê é o senhor Monsiú Anzol?
FRANCÊS
Arnol, si... anzol está para pexe futre.
VELHO
Futre também não, senhor. Perdoe vossa mercê que nos nomes franceses não sou tão versado como nos portugueses.
FRANCÊS
(fazendo ação de querer dar-lhe) Que me dizê? Que os francesê nô esta tan versadê como os portuguesê?
VELHO
Não, senhor, não digo isso! Digo que os apelidos estrangeiros custam mais a pronunciar. (À parte) Que tal é o bruto?
FRANCÊS
Ah... pois falê clarrê, e dizê o que querrê.
VELHO
Senhor, eu queria uma dança portuguesa, a milhor que puder ser, e como sei que vossa mercê tem este negócio, venho aqui para comprá-la, e creia que de bem longe.
FRANCÊS
Minhe negocê está nos fazende de Francê, e non dance, como dizê. Dancê esta cose de balhe.
VELHO
Isso, isso é que quero, e não fazendas de França.
FRANCÊS (irado)
Jan futre... vossa mercê venhê fazerrê escarnê de mim?
VELHO (à parte)
Dar-se-á caso que o vilhaquete me pregasse este logro? (para o Francês) Senhor, eu não sou homem de galhofas. Procurando uma dança disseram-me que aqui morava um senhor Monsiú chamado Monsiú Anzol que...
FRANCÊS (dá-lhe)
Arrê, arrê, otrê vez Anzol és vilhacarriê!
VELHO
A’d’El Rey sobre o Senhor Monsiú Anzol que me mata!
Saem todos e dizem.
TODOS
Que foi isto?
VELHO
Eu vo-lo digo mui brevemente… é fazer-me perder o juízo Babilónia de Berzabú, ou matar-me que é o mesmo!
TODOS
Pois que buscais?
VELHO
Uma dança para uma festa que no meu lugar se faz; e como vejo que entre vós todos se pode executar, dareis a meu mal remédio se de mim vos compadeceis. Se quereis vinde comigo…
TODOS
Sim, queremos.
VELHO
Pois vamos já a fazê-la, quero ver se me agrada.
Fazem uma contradança.
VELHO
Bravo! Estou satisfeito, vamos para a minha festa e aqui, senhores, deu fim...
TODOS
...A derrota de um velho louco.