PT / ES
ENTRIB

Novo entremez de Dia de Compadres

Novo entremez de Dia de Compadres.

Pessoas que falam nele:
Um juiz da ventena
Um peralta
Um estudante
Um fidalgo
Dom Cosme
Uma mulher
Saem o Estudante e o Peralta.
ESTUDANTE
Amigo, se vós quereis
gozar uma linda tarde,
vinde comigo.
PERALTA
                    É impossível
que haja gosto onde há fome.
ESTUDANTE
Sem dúvida não sabeis
o que é Dia de Compadres
em a corte.
PERALTA
          Para mim
é só Dia de Compadres
quando encho esta barriga.
ESTUDANTE
Não sabeis a minha idea?
Quando há padecido alguém
que vá comigo?
PERALTA
                      Bem sei
que sabes viver à moda,
porém nem tudo sai certo.
ESTUDANTE
Hoje é Dia de Compadres,
ireis a uma merenda
de sujeitos tão notáveis
que causa riso ouvi-los.
PERALTA
E quais são?
ESTUDANTE
              Atendei-me.
Há um fidalgo de aldea,
mais roto que o mesmo Adão,
afectando, mas não bem,
que vive em calor abrasado
para o seu traje disfarçar;
é tão amigo de neve
que assim que se põe à mesa
diz que sem ela não come.
PERALTA
Notável sevandija é
lá para a Serra da Estrela!
ESTUDANTE
Também haveis de ver outro
que em todo o dia não faz
senão andar tirando argueiros
a todos.
PERALTA
    É por agradar.
ESTUDANTE
E, depois de limpar o argueiro,
costuma pedir emprestado.
PERALTA
Já está entendido o achaque,
mas não aprovo o remédio.
ESTUDANTE
A estes dois tem convidado
certo juiz da ventena,
dando em gracioso tema,
que em falando, lhe não sabe
responder sem assessor.
PERALTA
Bom sujeito!
ESTUDANTE
             Também traz
a sua mulher, que há mui pouco
que a pôs em guarda-infante;
quer ser discreta, mas diz
graciosos disparates.
PERALTA
Amigo, o riso diverte,
porém nunca satisfaz;
eu estou com fome canina.
ESTUDANTE
A merenda desta tarde
correrá por minha conta.
PERALTA
Tanto poderá correr
que eu não possa alcançá-la.
ESTUDANTE
Ponhamos-nos a este lado,
pois já os sujeitos saem.
Saem D. Cosme e o Fidalgo, mui desprezível.
D. COSME
Em eu tendo um argueiro, desespero.
FIDALGO
Que haja quem tenha frio por Janeiro!
Que se está abrasando o mundo!
ESTUDANTE
                                                               Nobres ratos!
D. COSME
Jesus, que enxovalhado é este tempo!
FIDALGO
Quereis não ser perluxo?
D. COSME
                                        Não sejais louco!
Sai o Juiz, de vilão, e a Mulher.
JUIZ
Dom Cosme! Amigo! Cedo haveis chegado!
D. COSME
Isto é vir um homem convidado.
JUIZ
De Fonfarral acabo agora de apear-me,
que esta vara por certo há de matar-me.
FIDALGO
Enfim, como estais?
JUIZ
                                 Estou mui cansado,
o meu assessor vos dirá o meu estado.
ESTUDANTE (para o Peralta)
Já começam a asnear, tomai sentido.
MULHER
Jesus que mau vinho tinha a estalage!
Belo era para temperar selada.
D. COSME
E vós como vindes?
MULHER
                                Eu não sei nada.
FIDALGO
A vós nada vos custa o ser discreta.
MULHER
O que é o meu talento não ignoro,
sou prudente, formosa, e sou secreta.
D. COSME
Com a merenda haja muito cuidado,
que um Estudante vejo disfarçado.
JUIZ
Se para merendar for isso traça,
eu farei que à merenda ele dê graça.
PERALTA
A vós vem esta pedrada.
ESTUDANTE
                                          Assim o entendo,
mas agora lográ-los só pertendo.
PERALTA
Como?
ESTUDANTE
  Comendo.
JUIZ
Na merenda, cuidemos nós primeiro.
D. Cosme, alimpando-lhe um olho:
D. COSME
Perdoai-me que vos tire este argueiro.
FIDALGO
Jesus, que calor faz!
JUIZ
                               Se é Janeiro,
que calor fará?! Quando um barqueiro
hoje, na praia de Santos, se gelou.
FIDALGO
Que não alcance eu uma dita destas,
quando estou ardendo!
JUIZ
                                            Eu não o entendo,
vem vestido em corpo e diz que está ardendo.
D. COSME
Com vestido tão leve, ainda se abrasa?
MULHER
Sairia por Agosto de sua casa.
D. COSME
Para que o Inverno abrase, não há razões.
JUIZ
Pode ser seja Verão em seus calções.
PERALTA
Amigo, a quimera é bem devertida;
porém nada disto me enche a barriga.
ESTUDANTE
Não sejas impertinente, espera.
D. COSME (alimpa-se)
Agora quero tirar o meu lenço,
que estou sujo do tempo; toca a alimpar-me.
FIDALGO
Agora, me parece, corre mais ar.
D. Cosme alimpa-lhe o chapéu:
Que traga um cavalheiro
como vós um chapéu assim tão sujo...
FIDALGO
Já isto passa de asseio.
D. COSME (alimpa o Juiz)
Jesus, que sujo estais e que perdido!
JUIZ
Homem, vê que amarrotas o vestido.
D. COSME
Quereis que vos alimpe a vós?
MULHER
                                                          Não preciso,
que o doutor me achou limpa esta manhã.
FIDALGO
Esta mulher, na verdade, me agrada.
D. COSME
Amigo Juiz?
JUIZ
                Algum argueiro mais?
D. COSME
Esperai.
JUIZ
     Que dizeis, invencioneiro?
D. COSME (faz que lho tira)
Que no olho tendes argueiro.
JUIZ (alimpando o olho
Ele quer com antolhos
e queixando-se)
meter-nos hoje os dedos pelos olhos.
Que me haveis feito?
D. COSME
                                    Quebrar um olho ao Diabo.
Mas não vedes já milhor?
JUIZ
                                             Eu não o creio.
Vão ao meu assessor a ver se vejo.
FIDALGO
Vós o haveis de dizer.
JUIZ
                                      Não me resista,
pois isto não é pleito que esteja em vista.
PERALTA
Digo, havemos comer?
ESTUDANTE
                                         Como uns padres.
Vós não sabeis que é Dia de Compadres?
JUIZ (para a Mulher)
Não trazeres lume... és uma louca.
FIDALGO
Senhores, vejam, não o tomem na boca,
lume em Janeiro! Que se abrasa o mundo?
MULHER
Diz muito bem; e logo
que o lume é grande fogo.
FIDALGO
É mui linda rezão e mui aguda.
D. COSME (sacode o Fidalgo)
Permiti que esta palha vos sacuda.
FIDALGO
Quem me dera aqui um copo de neve.
JUIZ
Que tanto é vosso fogo?
FIDALGO
                                         É cousa rara,
eu tomara de tarde e de manhã
somente para ter frio, uma terçã
JUIZ
Por isto andais com roupa tão ligeira.
FIDALGO
Se trouxera camisa, já morrera.
D. COSME
Não há de morrer um homem que anda sempre
tão roto, que é mais fácil, se me enfada,
dar-lhe um açoite que uma bofetada.
PERALTA
Rabiando estou de fome
ESTUDANTE
                                           Pois não ladres.
Tu não sabes que é Dia de Compadres?
JUIZ (para a Mulher)
Sabeis que hei reparado?
Que já Dom Cosme não pede emprestado.
D. COSME
Juiz, se sois meu amigo...
JUIZ
                                          Isto é cravar-me.
D. COSME (alimpa-o)
Vós me fareis o favor de emprestar-me
vinte mil réis, não mais.
JUIZ
                                           Seria asneira:
não me alimpe tanto, que isto é gafeira.
D. COSME
Fazei-me isto que é minudência.
JUIZ
Diga que não quero em minha consciência.
Sai um criado a pôr a mesa, e merenda.
MULHER
Aqui está já a merenda.
D. COSME
                                           Era tempo.
FIDALGO
Eu não como bocado se não há neve.
PERALTA
Amigo, por comer estou rabiando.
ESTUDANTE
Agora nos iremos agregando.
Amigo Juiz!
Vai-se chegando.
JUIZ
                  Que será este Fidalgo?
D. COSME
É um gorra que come como um galgo.
JUIZ
Pois calar.
ESTUDANTE
                   Conheceis-me?
JUIZ
                                                    Bem achado,
sei que na devassa estais pronunciado.
PERALTA
Adeus merenda.
ESTUDANTE
                           Vós estais mal informado.
JUIZ
A resposta me haveis de dar atado.
ESTUDANTE
Pois, porque me hão de atar nem dar castigo?
Digo, conheceis-me?
JUIZ
                                Atai-o, digo.
Atam-o todos.
PERALTA
Perdoa, amigo, que sou mandado.
JUIZ
Está bem atado?
MULHER
                                  Sim.
Põem-se a comer todos.
JUIZ
Pois agora merendemos.
ESTUDANTE
Que isto a mim se me faça!
JUIZ
Como era Entrudo queria,
da merenda ser rapia.
ESTUDANTE
Morro de fome!
PERALTA
                      Não ladres.
ESTUDANTE
Que eu tal vergonha suporte!
PERALTA
Vós não sabeis em a corte
o que é Dia de Compadres!
D. COSME
Olhem, não caia poeira.
PERALTA
Venha queijo!
JUIZ
                   Ah bom Peralta!
FIDALGO
Não o comam, se não é fresco.
JUIZ
Mui indegesto é o queijo.
PERALTA
Pois se vos chegar a assentar,
uma ajuda vos hão de deitar.
JUIZ
A meu assessor, isso vá!
FIDALGO
Que não neve uma migalha!
D. COSME
Um argueiro há na borracha.
Bebe o Juiz.
JUIZ
Tirai-lhe vós o argueiro,
que eu tirarei a palha.
MULHER
Onde está o copo?
PERALTA
                             Ei-lo aqui.
MULHER (bebe e cospe)
Jesus! Que mau chicolate!
ESTUDANTE
Amigo, dá-me um bocado.
PERALTA
Toma de pão um bocado.
Dá-lho e o Estudante o come apressado.
Jesus, que brava fome!
parece que hás estado preso.
MULHER
De ovos temos muitos pratos.
D. COSME
Ovos nos dais a comer?
MULHER
Pois, pergunto, pode haver
Carnaval sem haver ovos?
ESTUDANTE
Senhores, desses cozidos,
dem-me dois com Barrabás.
PERALTA
Amigo, tu comerás
um par de ovos sorvidos?
ESTUDANTE
Amigo, se hei de comer
estes ovos prometidos,
não me dês ovos sorvidos,
melhor serão por sorver.
JUIZ
Dem-lhe dois ovos passados.
MULHER
E este na cara pregado!
Atira-lhe com um ovo.
ESTUDANTE
Ai, que me acertou na cara!
FIDALGO
Ovos são moles, não tema.
ESTUDANTE
Escalavrou-me co’a gema.
MULHER
Pois cure-se com a clara.
ESTUDANTE
Sinto o pescoço molhado.
FIDALGO
Isso é do muito orvalho.
ESTUDANTE
Já é Inverno, senhor frangalho?
Levantam-se, e diz o Juiz:
JUIZ
Desatem a esse coitado.
E cante-se alguma cousa!
Desatam-o e corre para a mesa comer.
MULHER(canta)
Sempre estas merendas
damas parecem,
porque com elas todos
o juízo perdem.
PERALTA(canta)
Para estas funções
sempre Deus me guarde,
e me apronte cedo
outra igual tarde.